Este artigo é de autoria de António Vieira Pacheco, um apaixonado por desportos de raquetes. Pode encontrar este e outros artigos no seu blogue cujo nome é: ENTRAR NO MUNDO DAS MODALIDADES
Quem é o Senhor Badminton?
Num entardecer perpétuo da memória desportiva portuguesa, ergue-se, sereno e persistente, o nome de José da Silva Bento — figura que não somente andou pelos caminhos do badminton, mas os inaugurou com a tenacidade de um semeador em terra virgem.
Nascido a 5 de janeiro de 1946, em Lourenço Marques, Moçambique, Bento, é uma lenda viva da modalidade, transporta na alma as ressonâncias de uma terra onde a poeira vermelha se mistura com o sal da saudade. Pai de dois filhos e avô de três netos — uma rapariga e dois rapazes — a sua vida delineia-se como um mapa afetivo, onde a geografia do desporto se entrelaça com os veios profundos da dedicação e da persistência.
Bento, detentor de um palmarés ímpar, ostenta o epíteto de jogador luso com o mais copioso acervo de títulos em singulares — nove conquistas que ecoam como marcos indeléveis na tessitura competitiva do badminton nacional.
A génese e o chamamento
Foi ainda em África que os ventos do movimento o seduziram. Talvez, num campo improvisado, talvez, entre postes rudimentares e redes esgarçadas, descobriu a leveza cerimonial do badminton. Um jogo aparentemente simples, mas repleto de simbologia: o volante leve como um pensamento fugaz, a raqueta firme como a decisão de um homem. Ele foi jogador antes de tudo — daqueles cuja elegância fazia lembrar o sopro suave da brisa de Lourenço Marques a atravessar as acácias.
Ao longo das décadas, a sua travessia serpenteou entre a expressão atlética e o labor andragógico. Não foi somente um praticante. Foi um arqueiro da técnica, um guardião das minúcias que, no badminton, se revelam nos gestos mais ínfimos: no punho que oscila com subtileza, no pé que pousa como se respeitasse a superfície de jogo.
Devoção ininterrupta durante 66 anos
Quase três quartos de século — 66 anos! Talvez um pouco mais — entregues à elevação desta modalidade em Portugal. Bento foi atleta, treinador, mentor, juiz-árbitro e dirigente. Uma multiplicidade de papéis que se fundem num só conceito: o de missionário do desporto.
Campeão pelo Benfica. |
A sua ação na modalidade não se limitou ao plano doméstico e expandiu-se pelo Universo. Internacionalmente, Bento granjeou reconhecimento raro, culminando na atribuição do “Meritorious Service Award” pela então International Badminton Federation (IBF). Um galardão que, mais do que premiar, eterniza.
Em Portugal, o seu nome também é sinónimo de honra e mérito. A Federação Portuguesa de Badminton distinguiu-o com o título de “Sócio de Mérito com Distinção”, um tributo que lhe confere o estatuto de patriarca simbólico da modalidade.
Um estilo de liderança singelo e resoluto
Apesar da imponência do seu percurso, nunca trilhou os caminhos da vaidade. Preferiu o recato da competência. A sua voz — dizem os que o conheceram de perto — era pausada, mas perentória. Não clamava por holofotes. Impunha-se pela força do exemplo.
Em 2009, homenageado pelos 50 anos... |
Na urdidura de narrativas que se entrelaçam em torno do seu nome, destaca-se a sua rara aptidão para a edificação de sucessivas gerações.
Por entre os gritos abafados de treinos extenuantes e as orientações ditas quase em murmúrio, nasceram campeões, mas mais do que isso, nasceram seres humanos disciplinados, resilientes e íntegros.
Quer conhecer mais sobre grandes ícones do desporto nacional? Continue a ler e descubra histórias que inspiram gerações!
A pedagogia do gesto e o culto da precisão
A sua didática não residia em métodos rígidos, mas na atenção meticulosa ao pormenor. Como um escultor paciente, Bento lapidava talentos, respeitando o ritmo de cada um, ensinando que o badminton é um ato de precisão e leveza — como escrever um poema com o corpo.
Cada sessão era, para ele, uma cerimónia onde o ritual do aquecimento, a exatidão do serviço e a harmonia da deslocação eram gestos quase litúrgicos.
Moçambique não foi apenas o seu berço geográfico — foi também a matriz da sua sensibilidade. Daquela geografia primigénia recolheu o hábito da contemplação serena e o entendimento íntimo das cadências do tempo. O jogo, para o senhor da modalidade, era como a dança dos embondeiros ao vento: firme na raiz, mas maleável no caule.
Talvez por isso a sua presença no campo era tão evocativa. Quem o observava a orientar jovens atletas percebia que ali habitava algo mais profundo: uma filosofia.
Uma forma de ver o mundo através das linhas do court e da trajetória elíptica de um volante.
Tradição e vanguarda
Ao longo dos anos, o badminton evoluiu. A técnica modernizou-se, os materiais sofisticaram-se, os circuitos internacionalizaram-se. Porém, Bento nunca se viu alheado dessas mudanças. Antes, abraçou-as, como quem entende que o progresso não nega a tradição — antes a honra.
Soube, como poucos, conjugar o rigor da herança com a ousadia da renovação. Por isso, ainda hoje, muitos o consideram um guardião da essência, mas também um arquétipo do futuro.
O legado invisível
Há legados que se inscrevem em troféus ou atas. O de Bento vive, sobretudo, na intangibilidade dos gestos repetidos por centenas de atletas que formou ou inspirou.
Está no modo como seguram a raqueta. No silêncio com que escutam o treinador. Na dignidade com que aceitam a derrota e celebram a vitória.
É um legado etéreo, mas indelével — como o traço de uma pena em papel de arroz.
O meu nome é... |
Palavras raras para
um homem singular
Que palavras podem conter um homem assim? Talvez algumas, menos visitadas no léxico quotidiano:
Alvíssaras: o anúncio do seu reconhecimento internacional foi uma alegria para o desporto nacional.
Areté: excelência moral e física, em harmonia clássica.
Egrégio: a nobreza discreta com que sempre serviu.
Harmonioso: como o seu estilo dentro e fora de campo.
Um tempo que não passa
Hoje, com 79 anos, permanece como figura de referência. Vive, respira e observa — talvez com a mesma serenidade de quem escutava o chilrear matinal nas varandas coloniais de Moçambique.
O tempo não o consumiu. Sublimou-o. Transformou-o num símbolo. E símbolos, como os deuses da mitologia, não desaparecem: habitam a eternidade das ideias e das emoções.
Em cada volante que se eleva no ar, há uma memória sua. Em cada atleta que inicia o percurso, há um reflexo do seu ensinamento. E em cada relato, como este, há uma tentativa humilde de dizer — com palavras — o que só os grandes mestres conseguem traduzir com silêncio e gesto.
José da Silva Bento é, pois, o Senhor Badminton. É também muito mais do que isso. É um dos últimos artesãos do desporto. E, por isso mesmo, não é mero destinatário de homenagem, mas figura que convoca silêncio e reflexão, como se se escutasse uma memória em eco.
Sem comentários:
Enviar um comentário